
Mais cedo ou mais tarde, todo colecionador se coloca diante da questão fundamental: qual é meu disco preferido? Como escolher, numa montanha de objetos, que representam não apenas músicas, mas também memórias e momentos de nossa vida?
Acho que o mais fácil é realmente partir para uma compartimentação desse caos emocional, separando tudo em categorias. O disco que mais lembra aquela viagem inesquecível; aquele que está totalmente vinculado a sua adolescência, a descoberta da sexualidade, ao primeiro amor e a primeira decepção; aquele que te recorda das grandes alegrias. E aquele outro que ainda traz o gosto amargo das pequenas tristezas.
Mas, às vezes, não é tão difícil assim. Existe
AQUELE disco na sua vida. Aquele que mudou tudo e que ainda hoje você escuta com um prazer inigualável. Para mim, esse disco é
THE QUEEN IS DEAD, o álbum que os
Smiths lancaram em 1986, e que transformou o rock oitentista.
Para quem tem entre 30 e 40 anos, e curte musica, a década de 80 se tornou um período um tanto mágico, quase mitológico. Foi o auge do
rock brasuca e, particularmente, do rock saído de Brasília.
Legião Urbana,
Capital Inicial e
Plede Rude fizeram história e definiram uma época.
Lembro perfeitamente da minha ansiedade para que a
revista Bizz chegasse às bancas, com todas as dicas dos melhores lançamentos, dos discos fundamentais - a discoteca básica, última seção da revista, que eu adorava; as novas bandas, as entrevistas que recheavam o meio da publicacão, enfim.
Não existia internet, a MTV só chegaria na decada de 90. E o mercado fonográfico ainda não sabia o que fazer direito com o potencial daquela molecada louca por consumir rock. E, assim, os discos foram saindo aos pouquinhos.
Low Life do
New Order,
Crocodiles do
Echo & The Bunnymen,
Tinderbox da
Siouxsie, os primeiros do
U2.
Os
Smiths já chegaram por aqui com uma aura de gênios. A imprensa brasileira, que sempre babou um pouco pelos ingleses, deixava todo mundo com água na boca.
Mas, e os discos? O primeiro que eu escutei nao foi o
Queen is dead, mas o
Hatful of Hollow, uma espécie de compilação de coisas que eles haviam gravado para o radio; e musicas novas, que traziam a maravilhosa
Please Please Please Let Me Get What I Want.
O problema era como conseguir os demais. Grana para disco, era uma coisa rara lá em casa, mas minha irmã já trabalhava e, um belo dia, chegou com um presente para o irmão caçula. Ah, a sensação de segurar aquela obra de arte entre minhas mãos! Eu, finalmente, tinha
The Queen Is Dead.
A belíssima capa, com uma foto esverdeada do ator francês
Alan Delon, no auge da juventude, a sucessão de clássicos e a música mais linda que eles já gravaram:
There's a Light That Never Goes Out (aquela dos versos
and if a double-decker bus/
crashes into us/
to die by your side/
such a heavenly way to die). Tudo em
The Queen Is Dead é perfeição, beleza e poesia.
Morrissey, assim como
Renato Russo, abriram um mundo de possibilidades literárias para mim. Descobrir que havia uma conexão entre os versos desencantados de
Moz e os poetas românticos que eu estudava no segundo grau, foi uma revelação sobre os fascinantes caminhos que a arte traça, e de como o artista carrega em si o peso da tradição e a capacidade de renovar tudo ao seu redor.
No ano seguinte, os
Smiths já não existiriam. Foi uma carreira curta, apenas 4 discos e algumas coletâneas, mas suas músicas e discos permanecem. Após um período de certo ostracismo, o mundo viu surgir bandas que se referenciavam diretamente a
Morrissey,
Johnny Marr,
Andy Rourke e
Mike Joyce.
A justiça tarda. Mas, nunca falha.