terça-feira, 8 de setembro de 2009

O Coração das Trevas

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!


Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!


(...)

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!


Os versos acima são de autoria do poeta brasileiro Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852), um dos grandes representantes do ultra-romantismo em solo nacional.

O movimento, que revolucionou as letras e as artes no mundo inteiro, tinha um mórbido fascínio pela morte, uma atração pelo macabro e uma relação ambígua com o sexo e o amor – o primeiro visto como profanador da pureza e da inocência e o segundo idealizado em excesso.

Álvares, portador de tuberculose, morto precocemente aos 20 anos de idade, devido a complicações decorrentes de uma queda de cavalo, talvez tenha sido o poeta que eu mais li na minha adolescência.

Não é para menos: considerando-se a idade de sua morte, dá para concluir que escreveu boa parte de seus versos ainda adolescente. Seus poemas estão impregnados dos conflitos e tormentos que assolam nossos corações e mentes nesses difíceis anos de passagem. Além do mais, ele morreu muito jovem e descreveu exaustivamente os sofrimentos pelos quais passou. Nada pode ser mais romântico que isso.

Como se não bastasse, Azevedo é autor de uma das peças mais instigantes já escritas em português: Macário. É de sua autoria também o livro de contos Noite na Taverna, nos quais experimenta uma prosa de inspiração sobrenatural e tom soturno.

Mas, o que um poeta morto na primeira metade do século XIX tem a ver com um blog de música e cinema? Tudo, ora pois!

O fascínio pela morte e pelo lado sinistro da vida é um dos motores do rock. A depressão explicitada nos versos de poetas como Álvares, Fagundes Varela e Casimiro de Abreu é uma das constantes na música popular do século XX.

A tristeza, por mais paradoxal e estranho que possa parecer, é um elemento fundamental em um estilo que, a princípio, celebrava a alegria e o prazer. E muitos roqueiros seguiram direitinho o preceito de viver intensamente e morrer jovem. Ou, como diria Lobão, melhor viver dez anos a mil do que mil anos a dez.

De cara, consigo pensar em pelo menos uma dúzia de álbuns nos quais a morte, a depressão e a angústia são personagens marcantes.

Já na década de 60, surgiria na Inglaterra um dos mais genuinamente tristonhos artistas que já existiram, o delicado e tímido Nick Drake. Seus três álbuns (Five Leaves Left, Bryter Layter e Pink Moon) são assombrados por um calmo desespero. Tragicamente, Drake morreria de uma overdose de anti-depressivos, sem conhecer o sucesso. O que não impediu que se tornasse um dos mais influentes artistas dos últimos tempos.

Nos anos 70, o cultuado Lou Reed, lançaria, em 1973, o álbum Berlin, um disco triste tanto em som quanto em texto. Aliás, Reed sempre foi um mestre em criar canções sinistras. Vide Perfect Day, Venus In Furs e Heroin.

Gêmeo artístico de Reed, Iggy Pop nos presentearia, em 1977, com o soturno The Idiot (título inspirado possivelmente pelo livro de mesmo nome do escritor russo Dostoievski, outro monstro do deprê nas letras), disco que, apesar da pop China Girl, não esconde sua atmosfera dark.

Um pouco mais para frente, no início da década de 80, o petardo Closer, do Joy Division, pode se orgulhar de ser uma das obras mais sombrias e claustrofóbicas de todos os tempos. E de ter gerado uma prole imensa de chorosos, suicidas e maníaco-depressivos.

Dentre esses filhos, encontram-se as obras-primas Disintegration do The Cure, Darklands, do Jesus And Mary Chain, Floodland, do Sisters Of Mercy, Lovely, do My Bloody Valentine, Your Funeral My Trial do classudo Nick Cave e o primeiro da banda House Of Love.

Mais recentemente não se pode esquecer da tristeza de final de milênio do Radiohead, no mais que perfeito OK Computer, da destruição existencial proposta pelo Nirvana no incompreendido In Útero, do mergulho nas trevas que é The Downward Spiral, do Nine Inch Nails, disco que gerou a magnífica Hurt, mais tarde regravada pelo homem das trevas original, Johnny Cash e, finalmente, da obra completa do músico Elliott Smith, uma espécie de Nick Drake moderno, igualmente talentoso e morto também de forma estúpida e precoce.

Confesso que não escuto mais essas coisas com o mesmo prazer masoquista de antigamente. Já sou quase um quarentão e ficar chorando sobre o vazio da existência me parece uma perda de tempo imperdoável.

Mas, para quem me conhece, fica a dica: quando eu morrer, quero que toquem Love Will Tear Us Apart, do Joy Division, no funeral.

Mais pessimista, impossível.

8 comentários:

Afonso C. disse...

Indiscutivelmente, para mim, este texto marca a sua superação de escrita neste Vitrola Encantada.
Vale um prêmio literário.
Parabéns, meu amigo.

Anônimo disse...

Vale um prêmio literário mesmo. Eu sou um grande fã dessas bandas que você citou, leio Dostoiévski também. Baseado nisso tudo, esse foi um texto que eu gostaria de ter escrito. Vou divulgar. E parabéns pelo texto.

Anônimo disse...

luis, estou MARAVILHADO. o que acaba de escrever não são mais suas impressões sobre música. é literatura especializada. meus parabéns.

Miguel Leocádio Araújo disse...

Rapaz, que texto maravilhoso. Digo a mesma frase escrita por Maringa, acima: eu gostaria de ter escrito este texto. As relações que você fez entre literatura e rock são ótimas. Não sei se você estudou Letras ou jornalismo. Mas escreve com a segurança de alguém que conhece bem os dois assuntos: palavras e acordes. É muito bom ler algo dessa qulidade na rede. Ah, e os álbuns que você citou são alguns dos meus preferidos.

Luis Valcácio disse...

Pessoal, muito obrigado pelas palavras para lá de carinhosas. Valeu mesmo. Já tinha um tempo que queria tentar escrever algo que unisse minhas duas grandes paixões: música e literatura.
A propósito, Miguel Leocádio, não fiz nem Letras nem Jornalismo. Sou licenciado em Artes Plásticas, mas sempre li muito sobre livros e escritores, daí o texto apresentar uma certa familiaridade com o mundo da Literatura.
Grande abraço a todos.

Adjafre disse...

Isto é que é luxo na escrita. Apaixona a gente!
Fabuloso isso que você diz aqui. Eu fico é mudo!

Germana disse...

Affffffff!!
Morta de feliz em ler essas suas lâminas que tanto cortam as delicadezas.

Luis Valcácio disse...

AFFFFF, Germana. Tá me chamando de Wolverine, é?
Beijo e volte sempre!
Ah, beijo também para o Adjafre que tem passado por aqui e deixado palavras sempre muito simpáticas!